Psicologia Narrativa e Identidade

Um estudo sobre auto-engano e organização pessoal

Descritivo O Autor

JOÃO MANUEL DE CASTRO FARIA SALGADO, natural do Porto, licenciou-se em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, em 1992, tendo-lhe sido atribuído, então, o prémio Fundação Engenheiro António de Almeida, por mérito escolar. Em 2000 obteve o grau de doutor em Psicologia Clínica, pelo Instituto de Educação da Universidade do Minho, sob a direcção do Professor Doutor Miguel Gonçalves.
Docente e coordenador do curso de Psicologia do Instituto Superior da Maia, o autor dirige ainda a Unidade Orgânica prestadora de Serviços de Consulta Psicológica (CASP), do mesmo Instituto.
Da colaboração em equipas de investigação da sua área científica, releve-se a sua participação como investigador em projectos devotados ao estudo da identidade pessoal, psicopatologia, numa orientação que sublinha a psicologia narrativa e discursiva. Além de ter publicado vários artigos em revistas científicas nacionais e internacionais da especialidade, regista-se ainda a  sua participação em congressos e encontros científicos na área da Psicologia.

Do Prefácio:

"É para mim um grande prazer ver o trabalho realizado pelo Prof. João Salgado ser publicado e poder modestamente colaborar com a redacção deste prefácio. Este texto corresponde, grosso modo, à dissertação de doutoramento que o Prof. João Salgado defendeu há alguns anos na Universidade do Minho, sob minha orientação.
A qualidade desta investigação, a originalidade do objecto de estudo e o rigor do trabalho empírico são, do meu ponto de vista, exemplares.

Esta investigação procura estudar uma experiência quotidiana, que a julgar pelos seus resultados empíricos, a maioria das pessoas sente como familiar: o enganar-se a si próprio. Começa, no primeiro capítulo, por procurar definir este fenómeno e de o libertar da sua natureza paradoxal. Se pensarmos no paradigma da racionalidade ocidental, que assume o seu expoente máximo no "cogito eito sum" de Descartes, a experiência de nos enganarmos a nós mesmos é de facto paradoxal. Como pode alguém enganar-se a si próprio? Pode ser mais ou menos fácil enganar os outros, deliberadamente ou ainda por acidente, mas como podem o enganado e quem engana ser a mesma pessoa? Como traçar uma linha divisória dentro da nossa invididualidade, entre uma parte de nós que decide enganar, mentir ou ocultar, e outra que se deixa enganar?
Depois de verificar que diferentes modelos teóricos sugerem diferentes conceptualizações de auto-engano, o autor procura apresentar uma revisão das teorizações sobre o inconsciente; dado que a existência de processos inconscientes seria uma forma de resolver o paradoxo atrás referido. De facto, quando no século XIX começa a surgir de um modo claro a ideia de inconsciente, por exemplo em Freud, passa a ser evidente que nas pessoas existe uma multiplicidade de "eus". Afinal, na aparente simplicidade do "penso, logo existo", ocultavam-se processos de pensamento que escapavam ao controlo e conhecimento do sujeito que os pensava. O inconsciente tornou-se um conceito explicativo de um conjunto de fenómenos dificilmente inteligíveis se assumirmos a ideia de que os seres humanos são racionais e completamente conscientes de si próprios.

Se até aos anos 50 do século XX o inconsciente era o domínio, por excelência, da psicanálise, com a emergência da revolução cognitiva na psicologia, o cognitivismo começa a procurar estudar os processos inconscientes. Há hoje um relativo consenso em torno da existência destes fenómenos, seja qual for a designação que se utiliza para eles - processos inconscientes, processos implícitos ou processos automáticos. É no âmbito desta diversidade paradigmática que se procura aqui perceber como o auto-engano pode ser definido, desde a psicanálise ao cognitivismo.

O quarto capítulo é de natureza epistemológica, reflectindo em torno das contribuições do construcionismo social para a compreensão deste fenómeno. É que o construcionismo social sugere que se abandone a reificação a que a psicologia está habituada. Segundo esta abordagem os nossos conceitos são linguagens que constituem uma dada realidade, ao invés de a reflectirem. Se assim é, a pergunta será não tanto se "existe auto-engano?", mas "para que serve este conceito?, e "que efeitos poderá ter pensarmos a sua existência"?"

No quinto capítulo discute-se como se pode articular a compreensão do conceito de identidade com as formulações do auto-engano. Sugere-se, a partir de uma concepção narrativa, que o auto-engano pode ser um instrumento de produção de coerência nas nossas vidas. Deste modo, o auto-engano não é algo que de facto acontece na "maquinaria" psíquica, mas um instrumento que as pessoas utilizam para narrar, para si próprias e para os outros, as descontinuidades das suas vidas. De mecanismo real, o auto-engano passa a ser concebido como uma espécie de "figura de estilo", um recurso do narrador, ao serviço de uma narrativa de vida mais plausível.

No capítulo sexto surge o primeiro estudo empírico. Procura-se verificar se uma amostra de alunos universitários reconhece a existência de auto-enganos nas suas vidas e realiza-se uma caracterização descritiva destas ocorrências. Procura-se ainda neste estudo verificar se há uma relação clara entre a complexidade do self, o auto-engano e a sintomatologia psicopatológica. Os resultados obtidos são curiosos: uma identidade mais complexa parece estar associada quer a uma maior produção de auto-enganos, quer a um nível superior de sintomatologia.
Este primeiro capítulo empírico suscita a reflexão que se segue acerca da natureza dialógica da identidade. A ideia central é que em cada um de nós habita uma multiplicidade de vozes: da nossa família, dos nossos amigos, dos media, de nós próprios em outros tempos ou em outros contextos, etc.. Esta formulação, aparentemente nova na psicologia, já Walt Whitman a tinha adivinhado, quando dizia: "Contradigo-me?/ Muito bem, então contradigo-me,/ (sou imenso, contenho multidões)". É neste espaço habitado por multidões de vozes que o auto-engano pode surgir. Assim, o auto-engano é percebido como a supressão de uma voz particular por acção de outras vozes. É ainda neste capítulo que é apresentada a metodologia de Hubert Hermans, utilizada no estudo empírico seguinte.

No oitavo capítulo esta metodologia - o método de auto-confrontação - permite complexificar de um modo muito interessante o objecto de estudo. Aqui são estudados 9 participantes de modo aprofundado. A ideia da alternância de vozes no processo de construção da narrativa de identidade permite, aqui, dar um novo sentido ao conceito de auto-engano. Assim, o auto-engano seria simplesmente uma voz marginalizada ou silenciada em benefício de outra voz dominante. As tensões existentes entre duas vozes em conflito são, pois, a metáfora de que se parte neste estudo empírico e que permite, de algum modo, integrar a literatura revista sobre o tema.
Como se pode verificar, a complexidade do tema em estudo é considerável, mas o autor trata-o de uma forma clara e quase didáctica, permitindo-nos seguir o seu percurso na construção de uma leitura para um fenómeno amplamente experienciado mas que poucas vezes questionamos. Desta forma, para além das suas qualidades científicas, o presente livro constitui também, a meu ver, um excelente instrumento de estudo para os alunos de psicologia que se interessem por este tema fascinante."

1 de Setembro de 2003

Miguel Gonçalves
Professor Associado com Agregação da Universidade do Minho